Falar espanhol. Jogar futebol. E gostar de gente.
Acredite se quiser, mas foi mais ou menos assim que começou meu ministério pastoral, por assim dizer, em meados de 2004, quando recém saído do Seminário fui chamado para servir como Missionário Regional para a comunidade Hispânica no Noroeste do Arkansas – EUA. As três ações, que funcionavam como um tipo de pré-requisito, me foram solicitadas numa entrevista que realizei com um Secretário Distrital de Missões da Lutheran Church Missouri Synod. Estava concluindo o 6º ano teológico e literalmente suava tentando me comunicar com ele numa daquelas cabines telefônicas que ficavam no Vermelhão e que tantas histórias e conversas testemunharam. A sabatina estava nos seus “finalmente” e eu lhe confessei minha preocupação com a falta de experiência e sentimento de incapacidade diante de um chamado peculiar para o qual entendia não estar preparado. O experiente pastor me respondeu que para começar, o imprescindível, em termos práticos, seria isso mesmo:
Falar espanhol (que posteriormente fui me dar conta que significava mais que manejar o idioma castelhano, mas falar a linguagem das pessoas);
Jogar futebol (que em algum momento fui aprender que significava mais que praticar o esporte, mas ir ao encontro das pessoas onde elas estão, geográfica, social e espiritualmente);
E gostar de gente (que eventualmente fui descobrir que significava mais que priorizar pessoas em detrimento de tarefas, mais que ser sensível ao valor cultural do relacionamento e da convivência, tão caro aos hispanos, mas morrer para mim mesmo e me tornar, ainda que imperfeitamente, um pequeno Cristo para eles).
Quando ouvi o Secretário de Missões, confesso que minha primeira reação, ingênua e precipitada, foi de alívio. Senti-me como Davi tentando explicar para Saul que derrubar Golias não seria tão difícil assim, uma vez que ele estava bem acostumado a mexer com fundas, pedras e feras no campo. Tanto pelo treinamento que me fora proporcionado pela igreja, como por questão de perfil e personalidade, falar espanhol, jogar futebol e gostar de gente - as expectativas explicitadas para meu trabalho - me pareciam competências plenamente possíveis de serem desempenhadas, de certa forma até mesmo com alguma naturalidade. Esse sou eu, o senhor está me descrevendo - lembro de pensar com meus botões.
Mas antes de se despedir, o Secretário de Missões concluiu: “Lembre, esse é só o começo. Com o tempo, você precisará aprender muitas outras coisas que serão fundamentais para o contexto e o tipo de ministério ao qual lhe estamos chamando. Por isso, permaneça ensinável [teachable]”. Ele não podia estar mais certo e ter me dado mais sábio conselho. Eu poderia começar a tentativa de alcançar imigrantes latino-americanos a partir do espanhol, do futebol e do esforço de amar aquele povo especial que Deus me daria para pastorear, que são atitudes e aptidões, como já expressei, familiares, até certo ponto. Tais posturas, somadas, claro, à formação ministerial recebida no Seminário, e a sempre presente misericórdia divina, seriam suficientes para dar início ao trabalho. Mas não tardaria em chegar o tempo de me defrontar com novas situações eclesiásticas, novas questões missionais, novas realidades pastorais que me obrigariam a continuar a observar, estudar, pesquisar, refletir teologicamente. E foi nessa circunstância oportuna que a Revista Missio Apostolica passou a fazer parte da minha dieta básica de educação continuada.
Bendita hora e benditos os colegas que me orientaram para o site original desta nossa revista. Bendita hora e benditos os colegas que me apresentaram autores luteranos confessionais com tão significativa experiência acadêmica e prática. Foi onde conheci e saboreei artigos que, tão precisamente, articulavam temas de missiologia, cristologia, pneumatologia, eclesiologia, sacramentologia, liturgia, dentre outros - temas que tocavam direta e relevantemente nas necessidades e oportunidades que encontrava num campo missionário diferente - mais difícil até - do que supunha que teria pela frente. Ali havia insights que respondiam ou, pelo menos, apontavam caminhos para questões espirituais que estavam sendo feitas, tanto por crentes, como por não crentes e descrentes. Eram diálogos e abordagens que me colocavam em contato com um DNA missionário do movimento luterano que eu jamais pensara existir, que devolviam a esperança da pertinência e da fecundidade de tudo o que havíamos tocado em sala de aula, aquela teologia saudável que ansiava em ser posta para trabalhar, que ansiava em continuar sendo traduzida e desdobrada para um mundo faminto pelo Evangelho, pela Graça, pela Cruz, por Jesus. Não devo apenas à publicação o crédito pelo aprendizado teológico que me foi oportunizado durante os 16 anos de ministério pastoral – e por isso não advogaria para sua suficiência nesse sentido. Mas Missio Apostolica foi – e ainda é – um dos instrumentos que mais confio e tiro proveito.
Pedi permissão ao nosso editor, para trazer-lhes esta nota pessoal nesse editorial. Falei da minha relação com esse material, mas poderia ter citado a experiência de outros colegas e irmãos, que também foram e são abençoados a cada fascículo por tão preciosos escritos e que poderiam subscrever a minha humilde chancela. A ideia é a do encorajamento, do reforço ao conselho ajuizado que já ouvimos de nossos mestres e mentores: educação continuada, especialmente para líderes e pastores, é essencial. A ideia é de apresentação de um recurso que pode ser extremamente útil nesse esforço. A história ministerial de cada um é diferente, mas ouso lhes dizer o que há anos me foi dito: permaneçamos ensináveis, e demos uma chance à Missio Apostolica de nos ajudar, como já ajudou a tantos!
Mas nem só de testemunho vive o presente editorial. Com prazer, anuncio o que o leitor está prestes a desfrutar neste segundo número desta revista, que desde 2019 está sendo disponibilizada em português. O tema central é o da intencionalidade da missão, isto é, aquele aspecto do labor missionário que tenciona explorar a importância da atividade do povo de Deus que é, ao mesmo tempo, resultado da graça que opera nos corações e resposta consciente, focada, proativa e alinhada a essa graça. A intencionalidade da missão não significa, nem no menos tóxico dos casos, o seguir a um modelo ou projeto específico e rígido de trabalho, nem no pior deles, o tornar-se escravo de um ritmo fechado, frenético, legalista e ativista de uma agenda religiosa permeada de lista de tarefas, performances e objetivos a serem executados. Tampouco a intencionalidade quer menosprezar o valor da espontaneidade das boas obras que são frutos da fé e acontecem naturalmente no cotidiano do viver cristão, seja como reação, seja como iniciativa, onde quer que o Espírito esteja soprando e Jesus esteja liderando. Junto com a equipe editorial, a partir da conjugação dos paradoxos teológicos, creio que podemos ser espontâneos e intencionais ao mesmo tempo no campo missional. Creio que, na maioria dos casos, já estamos posicionados – e aqui lembramos as vocações – onde Deus mais precisa de nós, com a ação missionária já predisposta de antemão. Entretanto, quisemos investigar a viabilidade e a legitimidade desse ângulo particular que privilegia o chamado de Deus a sermos sensíveis
às necessidades e oportunidades à nossa volta;
ao Espírito Santo com seus múltiplos chamados e dons específicos que nos capacita e envia a situações e empreendimentos nem sempre rotineiros e usuais;
e à Palavra de Deus que nos visita de tempos em tempos, tal como visitou o povo de Israel nos dias do profeta Ageu, despertando-nos do marasmo e da apatia, para um lugar de clareza de propósito e padrão de postura que tira as boas intenções do papel, movendo-nos para a tentativa de realização do que Deus espera de nós.
Tal tema da intencionalidade da missão nasceu na elaboração do Simpósio de Missão “Semeando no Concreto: O esforço intencional da igreja local na missão de Deus na cidade”, organizado em parceria entre o Distrito Paulista, o Seminário Concórdia e o Centro Internacional de Treinamento Missionário (CITM), nos dias 04 e 05 de Outubro de 2019, na cidade de São Paulo. Os artigos deste número podem ser categorizados como exposições apresentadas no referido encontro ou reverberações da discussão principiada nele. Tanto nas palestras como nos debates ficou evidente que o tema merece a atenção da igreja, que não seria esgotado em um único evento (ou mesmo em um único periódico), e que futuros desdobramentos seriam muito bem-vindos.
No primeiro artigo, Semeando no Concreto: uma introdução ao simpósio de missão urbana 2019 – SP, o Pastor Dr. Samuel Reduss Fuhrmann traz um prelúdio do tema a partir da metáfora bíblica da semeadura do evangelho, metáfora esta que esclarece a perspectiva fortemente teocêntrica da missão, sem deixar de afirmar a tarefa que Cristo deu à igreja. No segundo artigo, Congregações Luteranas Urbanas Frente à Indecifrável Tarefa de Comunicar o Evangelho, o Pastor Dr. Sergio Schelske aborda o trabalho missionário de congregações luteranas no contexto de grandes cidades – especificamente a grande Buenos Aires – identificando dificuldades e suas causas e uma lista de elementos de avaliação para motivar uma visão e esforço missionário da comunidade local e concluindo que a intencionalidade no desenvolvimento de estratégias missionárias implica em reconhecer as mudanças sociais que ocorrem e a busca pela inserção relevante da congregação na comunidade. No terceiro artigo, A Missão Urbana como Desafio do Sacerdócio Real da Igreja, o Pastor Airton Scheunemann Schroeder trabalha a missão da igreja cristã no contexto urbano, concentrando no significado, possibilidades e desafios da doutrina do sacerdócio universal dos cristãos. O escrito fundamenta-se em textos bíblicos, literatura contemporânea e escritos de Lutero para embasar o envolvimento intencional do cristão, enquanto indivíduo, e da igreja como corpo de Cristo, nas demandas da cidade. No quarto artigo, Construindo Pontes Missionárias: sendo intencionais no testemunho no dia a dia, o Pastor Me. Leandro D. Hübner propõe uma maneira de ver a intencionalidade da missão dentro das vocações cristãs que evita o modelo evangelical brasileiro e oferece propostas concretas a membros da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) de como construir e ser pontes para conectar pecadores a Cristo. E no artigo de conclusão, O papel do Sacerdócio Universal na Missão de Evangelizar Não Cristãos, o Pastor Leandro Junior Rech reforça o papel do Sacerdócio Universal de todos os crentes, investigando, especialmente na teologia de Lutero, base teórica para sua tese e subsídios práticos para a evangelização intencional do leigo aos não cristãos.
Este volume de Missio Apostolica ainda brinda o leitor com a resenha do livro Transforming Mission Theology (2017), de Charles Van Engen, pelo Rev. Francis Hoffmann e do livro Cross-cultural Connections: Stepping Out and Fitting in Around the World (2002), de Duane Elmer, pelo Rev. Leandro D. Hübner.
Desejo a todos uma profícua leitura e reflexão. Não deixe de compartilhar seu feedback com a equipe editorial. Estamos juntos, sob a graça de Deus, pensando e trabalhando na missão de Deus.
Rev. Laerte Tardelli Hellwig Voss
Membro do conselho editorial
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